Sociologia da Música
O presente blog visa discutir música numa perspectiva sociológica, bem como divulgar textos, músicas, etc.
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domingo, 14 de maio de 2017
quarta-feira, 10 de maio de 2017
segunda-feira, 25 de julho de 2016
Música Sertaneja Universitária e valores dominantes: um estudo do discurso das canções e sua relação com os valores sociais capitalistas
Música Sertaneja Universitária e
valores dominantes: um estudo do discurso das canções e sua relação com os
valores sociais capitalistas
Gabriel Teles Viana[1]
Felipe
Mateus de Almeida[2]
Resumo:
O presente artigo propõe refletir sobre a transmissão de valores dominantes
(axiológicos) através das letras da música sertaneja universitária. Nesse
sentido, far-se-á uma discussão sobre elementos que compreendemos como
fundamentais para se analisar este fenômeno, quais sejam, a questão do regime
de acumulação integral, valores, a história da música sertaneja, o vínculo com
a totalidade das relações sociais e por fim, a análise de uma música sertaneja
universitária com o objetivo de demonstrar seu caráter axiológico.
Palavras-chave:
Música Sertaneja Universitária, Regime de Acumulação, Valores, Análise do
discurso
Abstract:
This article
offers a reflection about the transmission of dominant values (axiologics)
through lyrics of the new country music. Accordingly, will be made a discussion
on what we understand as fundamental elements to analyze this phenomenon, which
they are, the issue of accumulation values, the history of country music, the
bond with the totality of social relations and finally, examination of the new
country music in order to demonstrate its axiological character.
Keywords:
new country
music, accumulation, values, speech analysis
INTRODUÇÃO:
Este trabalho se vincula principalmente a
questão da produção cultural e a música sertaneja universitária. Pretendemos
analisar os valores inseridos e reproduzidos pelo chamado “Sertanejo
Universitário” através do discurso transmitido em suas letras e canções.
Como objetivo geral, pretendemos apresentar uma
análise crítica dos valores inseridos e reproduzidos pelo sertanejo
universitário. Além disso, pretende-se fazer uma discussão teórica sobre os
valores e sua produção social e apresentar uma reflexão sobre a relação entre
música e sociedade.
Inicialmente, será
feita uma análise histórica sobre as transformações do modo de produção
capitalista. Após isso, será feita uma análise das transformações ocorridas na
música sertaneja a partir da reestruturação capitalista e do nascimento do
chamado regime de acumulação integral (Viana, 2009) para que se possa
compreender os valores que se tornaram dominantes na contemporaneidade e,
consequentemente, se tornaram presentes no campo da produção cultural e
musical.
AS TRANSFORMAÇÕES DO MODO DE
PRODUÇÃO CAPITALISTA
A
crescente racionalização e reestruturação do modo de produção capitalista
ocorrida com o surgimento do regime de acumulação toyotista e o enfraquecimento
do regime de acumulação fordista e sua rigidez no processo de produção de
mercadorias e nas demais estruturas existentes no capitalismo, trouxeram
mudanças significativas.
O
fordismo, o taylorismo e o toyotismo foram as três etapas do desenvolvimento
capitalista que antecederam a revolução informacional de nossos tempos. Segundo
Viana:
Taylor
se preocupou com o tempo de trabalho e seu aproveitamento máximo. Surge assim a
racionalização do processo de trabalho, e sua vigilância se torna mais
profunda. O método elaborado por Taylor apresentava um controle do tempo de
trabalho, que passa a ser cronometrado. Sem dúvida, o objetivo de Taylor é
aumentar a produtividade do trabalho (o que é equivalente, na maioria dos
casos, ao aumento de extração de mais-valor relativo) através de diversos
artifícios, entre os quais o controle rígido do processo de trabalho, o uso do
cronômetro, os prêmios por produtividade individual, o parcelamento das
tarefas, a formação de especialistas em gerência, a divisão entre trabalho de
elaboração e de execução etc (op.cit., 2009, pp. 65 e 66).
O taylorismo
possuía como características um regime rígido que priorizava a vigilância
profunda nos ambientes de trabalho; a racionalização dos trabalhadores e dos
ambientes de trabalho; possuía um caráter burocrático devido a criação dos
cargos de gerentes científicos e, além disso, tinha uma produção centralizada e
baseada no sistema Just In Case (JIC). O taylorismo foi o primeiro regime que
se preocupou com a questão da extração do mais-valor relativo[3] e
com a aplicação do processo científico a produção através do saber-fazer dos
operários e dos especialistas encarregados, ou seja, havia uma hierarquia e uma
burocracia nesse regime de acumulação.
Desde o final dos anos 60 até o
começo da década de 70, várias tentativas com o objetivo de deixar o espaço
fabril mais atraente foram feitas para que os operários se interessassem mais
pelo trabalho nas fábricas. Tais tentativas tinham como meta evitar o
absenteísmo e os demais descontentamentos dos trabalhadores com o regime e o
modo de regulação fordista do trabalho. Além disso, segundo Heloani (2003,
p.105) “a cisão dogmática entre elaboração e execução, a fragmentação e
consequente especialização exagerada (gerando insatisfação e alienação)”,
fizeram com que se pensasse em uma mudança no modo de regulamentação e no
regime de acumulação que vigorava no modo de produção capitalista.
É nesse contexto que surge o modo de
regulamentação/acumulação toyotista ou como alguns preferem chamá-lo, ohnista.
Para Heloani o toyotismo pode ser caracterizado como uma:
(...)inovadora
forma de produção, no lugar de gigantescas organizações verticalizadas, que
produzem desde a matéria-prima até seus produtos finais, ocorre a
descentralização do processo produtivo. Uma enorme rede constituída por
pequenas empresas responsabiliza-se pelo fornecimento de peças e outros
elementos para serem utilizados por núcleos centrais que dispõem da visão do
conjunto e que geralmente possuem tecnologia avançada e grande poder de barganha
com seus fornecedores (op.cit., 2003, p.119).
Nesse
sentido, o toyotismo deve ser compreendido como um modo de regulamentação e
organização da produção, das fábricas e do trabalho que possui como
características a descentralização; a tecnologia avançada; o sistema Just In
Time (JIT) e a flexibilização e integração das subjetividades dos
trabalhadores, ou seja, ao contrário do taylorismo que tinha como base o sistema
Just In Case (JIC)[4],
o toyotismo trabalha com o sistema Just In Time(JIT); é um modelo onde a
produção não é mais produzida em massa mas é produzida através da demanda por
produtos.
Porém,
o que diferenciou de maneira mais visível o taylorismo do toyotismo foi a
questão da flexibilização e da integração das subjetividades dos trabalhadores
( Harvey, 2003; Heloani, 2003). Enquanto no taylorismo o modo de regulamentação
do trabalho era mais rígido e fundamentado em ordens, hierarquia e burocracia,
no toyotismo substituíram-se as ordens pelas regras, ou seja, foi disseminada
uma ideologia que fazia o trabalhador pensar que era parte importante da
empresa; que era um ser detentor de um poder de avaliar e concordar ou
discordar das opiniões de seus superiores, de seus subordinados ou de seus
companheiros de função. O trabalhador passou a
acreditar em um discurso no qual a empresa era vista como uma matriarca que
deveria sempre ser defendida e idolatrada ele ainda continuava a ser manipulado
e vigiado, e além da parte racional (meios tecnológicos e informáticos), agora
ele também era vítima de uma ideologia[5].
Nesse sentido, podemos afirmar que
ao contrário do que pensava David Harvey em seu livro “condição pós-moderna”
onde defende a concepção de que vivemos em um regime de acumulação flexível,
podemos afirmar – assim como pensa Viana (2009) – que vivemos em um regime de
acumulação integral. Portanto, faz-se necessário uma breve discussão sobre esse
debate entre regime de acumulação integral e regime de acumulação flexível para
que se possa salientar a importância das transformações do modo de produção
capitalista e sua relação com as transformações no campo da produção cultural.
REGIME DE ACUMULAÇÃO INTEGRAL OU
REGIME DE ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL?
Harvey
em seu livro “Condição Pós-Moderna” faz uma discussão sobre taylorismo,
fordismo e toyotismo e diz que o toyotismo pode ser caracterizado como um
regime de acumulação flexível. Harvey recorre à linguagem da escola de
regulamentação que pode ser entendida como uma escola que cria um modo de
regulamentação que vai fazer com que haja uma materialização do regime de
acumulação que toma a forma de hábitos, leis e redes
que regulamentam e garantem a unidade e a consistência apropriada entre
comportamentos individuais e o esquema de reprodução (Harvey, 2003).O autor
conceitua a acumulação flexível como:
(...)um
confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apoia na flexibilidade dos
processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de
consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente
novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados
e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica
e organizacional (Harvey, 2003, p.140).
A
acumulação flexível pode ser compreendida então como um regime que cria uma
flexibilização nos processos de trabalho criando novas maneiras de se fornecer
os serviços financeiros e como uma acumulação que é responsável
por uma nova inovação comercial, tecnológica e
organizacional que transformou radicalmente as relações sociais de produção.
Nildo
Viana em seu livro “O Capitalismo na era da Acumulação Integral” apresenta uma
concepção diferente da concepção defendida por Harvey. Segundo Viana:
Ao
se falar de “acumulação flexível”, “especialização flexível”, “flexibilização
dos trabalhadores” e “aparato produtivo, vê-se que a palavra é utilizada em
sentidos diferentes e inexatos. (...)não existe “flexibilização” do aparato
produtivo e muito menos dos trabalhadores, o que existe é uma
“inflexibilidade”, pois tanto o aparato produtivo quanto os trabalhadores são
submetidos “inexoravelmente” e “implacavelmente” ao objetivo de aumentar a extração
de mais-valor relativo. (op.cit., 2009, pp.69 a 70)
Percebe-se com esta
citação, o quanto a proposição de Viana é diferente e mais radical do que a de
Harvey. Enquanto Harvey defende a ideia de que o atual regime cria uma
flexibilização nos processos de trabalho, no aparato de produção, um
relaxamento na disciplina fabril dos trabalhadores, Viana diz o contrário e
defende a ideia de que existe um regime de acumulação integral que provoca uma
extensão no processo de mercantilização das relações sociais e da busca de
ampliação do mercado consumidor.
Acreditamos que - assim como é
colocado por Viana -, essa ideia de acumulação flexível é bastante equivocada.
É um termo que deve ser superado e, por isso, também utilizaremos o termo
acumulação integral (op.cit., 2009, p.70). Não existe flexibilização dos
processos de trabalho e nem um relaxamento na disciplina fabril dos
trabalhadores; o termo flexível é apenas mais uma tentativa da burguesia e de
suas classes auxiliares de esconder o verdadeiro sentido do processo de
superexploração sofrido pelo proletariado. O que se tem hoje é um processo
muito maior e mais bem articulado de extração de mais-valor relativo dos
trabalhadores, ou seja, um conjunto de discursos, ideias, equipamentos,
materiais, leis e códigos que propiciam a burguesia uma grande facilidade para
exercerem o processo de exploração dos trabalhadores. A acumulação integral
invade todas as esferas da vida social do trabalhador, ela não ocorre só e
apenas no ambiente fabril, ela está em suas casas, nos seus ambientes de lazer,
nos seus programas de TV, nas suas rodas de conversa, em suas escolas e universidades
e, para polemizar um pouco mais, até dentro das igrejas que ainda são um “braço
invisível” do estado capitalista burguês. A acumulação integral engloba a
esfera política, econômica e social do trabalhador, ela toma conta da cultura e
se coloca a serviço dos interesses do capital.
Pensando pela lógica da acumulação
integral, a produção cultural no modo de produção capitalista também passa por
mudanças que são necessárias para que se possam manter vigentes os valores da
classe dominante em uma sociedade capitalista. Nesse sentido, a música
sertaneja passou e tem passado por diversas mutações no decorrer de sua
história e acreditamos que isso esteja associado às transformações do modo de
produção capitalista e a influência do capital fonográfico e comunicacional
(indústria cultural).
MÚSICA E SOCIEDADE
A relação entre música e sociedade é complexa, pois se insere em
determinado contexto histórico e em determinadas relações de produção desta
sociedade. É necessário partir do pressuposto que a música é produto do
trabalho humano, cuja consciência e valores expressos são constituídos
socialmente, portanto, a partir relações sociais; e no caso da sociedade
moderna, produto das relações sociais do modo de produção capitalista. Nesse
sentido, a seguir, partiremos das determinações concretas para analisar o
desenvolvimento histórico da música caipira, passando pela música sertaneja até
culminar em nosso objeto de análise fundamental: a música sertaneja
universitária.
DA MÚSICA CAIPIRA A MÚSICA SERTANEJA
O que compreende-se por música caipira e música sertaneja? O que
consiste suas particularidades e vicissitudes? Através destas perguntas,
permearemos as convergências e distinções entre estas concepções musicais.
Uma das principais características da música caipira é o seu
caráter espontâneo enquanto manifestação artística. Originada da classe
camponesa paulista, as manifestações espontâneas eram ligadas à produção, ao
trabalho, à religião, ao lazer, enfim, ao universo das relações de produção do
caipira paulista. A determinação fundamental da música caipira é, pois, “a sua
função enquanto mediador das relações sociais, no sentido de evitar a própria
desagregação” (CALDAS, 1979, pág. 80).
Portanto, a mediação é feita desde a sobrevivência econômica, como os
mutirões, até o convívio social, como essência da integração entre as
populações de bairros. Antônio Candido nos traz a ideia deste papel agregador
O pequeno número de componentes da comunidade, e o entrosamento
íntimo das manifestações artísticas com os demais aspectos da vida social dão
lugar, seja a uma participação de todos na execução de um canto ou dança, seja
à intervenção dum número maior de artistas, seja a uma tal conformidade do
artista aos padrões de expectativa, que mal se chega a distinguir. Na vida do
caipira paulista vemos manifestações como a cana-verde, onde praticamente todos
os participantes se tornam poetas, trocando versos e ápodos; ou o cururu
tradicional, onde o número de cantadores pode ampliar-se ao sabor da inspiração
dos presentes, ampliando-se os contendores (CANDIDO, 1967, pág. 39).
Quanto ao texto da canção na música caipira, raramente o autor
particulariza o seu discurso; ao contrário, o poeta caipira, através de sua
cantoria, assume a posição de porta-voz de seu povo. Waldenyr Caldas afirma que
“o texto da canção está sempre carregado de uma mensagem que permite a
identidade com a comunidade, e que atende aos anseios desta” (CALDAS, 1979,
pág. 81).
No entanto, este cenário começa a esboçar mudanças quando, a
partir de uma nova estruturação econômica brasileira, pautada na crescente
industrialização e urbanização do país (sobretudo nos grandes centros como São
Paulo e Rio de Janeiro), ocorre uma abertura para um novo regime de
acumulação. Com a crise do café, o êxodo
rural se intensifica, aumentando significadamente o contingente diário daqueles
que emigram para o centro urbano, procurando melhores condições de vida na
cidade. É nesse sentido que a arte
“rústica” [6] se
urbaniza, destituindo-se de um valor e revestindo-se de outro (CALDAS, 1979).
De acordo com a
bibliografia sobre a gênese da música sertaneja (CALDAS, 1987; NEPOMUCENO,
1999), esta deu início com os trabalhos da Turma do Cornélio Pires. Após frutífera receptividade deste “novo
gênero” musical, Waldenyr Caldas analisa a incorporação da música sertaneja na
Indústria Cultural:
Quando os agentes da indústria cultural percebem a grande
receptividade dessas músicas no meio rural, e já então com certa, ressonância
no meio urbano, com a apresentação da dupla Alvarenga e Ranchinho no Cassino da
Urca no Rio de Janeiro, em 1930, e com a gravação de grande aceitação de
“Tristeza do Jeca”, por Paraguasu, incentivadas pelas gravadoras. São muitas as
duplas que dão início à incorporação da música sertaneja pela indústria
cultural (CALDAS, 1979).
Compreendemos
aqui Indústria Cultural nos termos de Adorno e Horkheimer (1975) onde ocorre
uma padronização e manipulação da cultura, reproduzindo a dinâmica de qualquer
outra indústria capitalista, a busca do lucro, mas também reproduzindo as
ideias que servem para sua própria perpetuação e legitimação e, por extensão, a
sociedade capitalista como um todo.
O resultado disso
foi o exponencial crescimento da música sertaneja enquanto “novo estilo
musical”. Consequência deste crescimento foi a perda de autonomia por parte de
seus compositores e cantores, que passaram a produzir não aquilo que ansiavam e
conheciam, mas o que era determinado por elementos especializados em
mercadologia.
Nasce, com este
movimento histórico, a canção sertaneja de caráter mercantil; caráter esse
domina sua existência já desde seus primórdios até os dias de hoje.
Com essas incorporações da música sertaneja pela indústria
cultural, percebem-se agora novas conotações ideológicas, que se manifestam de
forma evidente na linguagem. O tema predominante, que era antes o viver no
campo, alterna-se (não é substituído) agora com os “casos de amor” vividos na
cidade, numa nítida demonstração de que a música sertaneja já não pertence mais
somente ao meio rural e ao interior, de que ela, agora, é urbana também
(CALDAS, 1979).
Com o processo de neoimperalismo (o que alguns ideólogos irão chamar de
“globalização”), a música sertaneja sofreu diversas transformações e deixou de
representar e atingir apenas uma parcela de uma população que vivia no campo e
trabalhava o dia todo para poder ter o que comer e sustentar sua família. Em
decorrência disso, a música caipira, que falava do cotidiano de seus
compositores e de seus ouvintes passou a se denominar música sertaneja e a
atingir um público cada vez mais diversificado e desinteressado sobre o
cotidiano, as letras, os problemas e os anseios que eram trazidos pela música
caipira. Segundo Santos:
A música sertaneja
desde a década de 60 vem apresentando mudanças significativas em vários
aspectos, e isso de deve à incorporação de elementos associados à estrutura
musical, adequação aos instrumentos elétricos (guitarra, contrabaixo), mistura
de ritmos, dentre outros (SANTOS, 2010, p. 159-160).
O
sertanejo universitário é a principal prova dessa transformação da música
sertaneja. Nesse ritmo musical, a viola e o violão acústico deixam de serem os
únicos instrumentos de acompanhamento e abrem espaço para a bateria, o
contrabaixo, a guitarra, o violino e o teclado. O rock, o Axé, e o pop se
misturam e criam um ritmo que cada vez mais se afasta da realidade dos
trabalhadores ouvintes e compositores da música caipira que falava de seu
cotidiano e de suas dificuldades.
Nesse sentido, podemos afirmar que o
sertanejo universitário é um ritmo advindo da indústria cultura e do regime de
acumulação integral capitalista. Isso se deve ao fato de suas letras serem
escritas com o intuito de passar os valores de consumismo. Cria-se uma cultura
consumista que é passada através das letras e do estilo dos cantores e
compositores do sertanejo universitário que acaba por propagar e disseminar
essa cultura fazendo com que ela se torne dominante.
Antes de iniciarmos a análise sobre
o discurso nas letras destas música, esboçaremos uma discussão teórica sobre
valores e música sertaneja universitária, utilizando algumas canções como um
exemplo de reprodução de valores dominantes (axiológicos).
Música e Valores
A música sertaneja –
assim como todas as outras representações artísticas e culturais -, perpassa
valores. Todas as relações sociais desenvolvidas em um determinado modo de
produção são orientadas segundo determinados valores e determinadas concepções.
Em uma sociedade onde vigora o modo de produção capitalista e,
consequentemente, uma sociedade onde existem antagonismos entre classes, os
valores também são heterogêneos:
O
ser humano é um ser social e por isso as relações sociais são fontes de
valores. [...] em sociedades heterogêneas (de classes) existe heterogeneidade
de valores. [...] cada classe social bem como outros grupos sociais, produzem
valores diferentes e, em muitos casos, conflitantes. O conflito social é
acompanhado pelo conflito de valores (VIANA, 2007, p. 24).
Tendo como base essa citação de
Viana, podemos afirmar que a ideia de neutralidade é algo impossível de se
provar porque todos nós somos orientados segundo determinados valores e
concepções orientados por nossa condição de classe. Em sociedades classistas, os valores podem
ser definidos como valores autênticos e valores inautênticos, sendo os valores
autênticos universais e os valores inautênticos históricos, transitórios e
particularistas (VIANA, op. cit., p. 24). Isso quer dizer que os valores inautênticos
são valores falsos que servem como base de legitimação para a ideologia da
classe dominante e de suas vontades para que os mecanismos de exploração da
classe trabalhadora (no caso do modo de produção capitalista) continuem
funcionando de maneira correta sem que ajam conflitos ou levantes
revolucionários contra o sistema capitalista. Esses valores são históricos
porque são construídos em uma determinada época; são transitórios porque mudam
de acordo com as necessidades de reestruturação produtiva do modo de produção
capitalista e são particularistas porque representam as vontades apenas da
classe dominante e não possuem um caráter universal, verdadeiro e emancipatório
com o objetivo de superar as contradições do capital, libertando os sujeitos de
suas amarras e de suas contradições. Esse papel de libertação está associado à
questão dos valores autênticos que por conta da dominação dos valores
inautênticos se encontram acobertados e esquecidos no inconsciente da classe
trabalhadora.
Partindo dessa discussão, nossa
concepção de valores está associada à discussão apresentada por Viana que
diferencia valores axiológicos de valores axionômicos. Os valores axiológicos
podem ser definidos como: “[...] aqueles valores que correspondem aos
interesses da classe dominante e, portanto, servem para regularizar as relações
sociais. Eles “transformam em virtude”, aquilo que é para reprodução de uma
determinada sociedade de classes, uma necessidade” (VIANA, op. cit., p.34). Os
valores axiológicos são os valores da classe dominante e representam as
necessidades, anseios e vontades dessa classe que acabam sendo universalizados
por conta de ideologias[7]
que legitimam os interesses dessa classe dominante através de instituições e
representações sociais, artísticas e culturais.
Os valores axionômicos podem ser
definidos como uma “forma assumida pelos valores autênticos, expressando,
geralmente, os interesses das classes exploradas e/ou grupos sociais oprimidos
(VIANA, op. cit., p. 35). Os valores axionômicos são os valores reais e
universais que expressam as concepções dos grupos ou classes excluídas em uma
determinada sociedade.
Portanto, nesse artigo, estamos
partindo do pressuposto de que a música sertaneja universitária é responsável
por transmitir os valores axiológicos da classe dominante que são transitórios,
inautênticos, históricos e particularistas através de suas mensagens passadas
através de suas letras. Um exemplo disso está na música “Camaro Amarelo” que é interpretada
por Munhoz & Mariano. A letra da música diz o seguinte:
Agora eu fiquei doce, doce, doce, doce
Agora eu fiquei do-do-do-do-doce, doce [2x]
Agora eu fiquei doce igual caramelo
Tô tirando onda de camaro amarelo
Agora você diz: "Vem cá que eu te quero!"
Quando eu passo no camaro amarelo
Quando eu passava por você na minha CG
Você nem me olhava
Fazia de tudo pra me ver, pra me perceber
Mas nem me olhava
Aí veio a herança do meu ‘véio',
Resolveu os meus problemas, minha situação
E do dia pra noite fiquei rico
Tô na grife, tô bonito
Tô andando igual patrão
Agora eu fiquei doce igual caramelo
Tô tirando onda de camaro amarelo
Agora você diz: "Vem cá que eu te quero!"
Quando eu passo no camaro amarelo
Agora você vem, né? E agora você quer, né?
Só que agora vou escolher, ta sobrando mulher
Agora você vem, né? E agora você quer, né?
Só que agora vou escolher, ta sobrando mulher
Quando eu passava por você na minha CG
Você nem me olhava
Fazia de tudo pra me ver, pra me perceber
Mas nem me olhava
Aí veio a herança do meu ‘véio',
Resolveu os meus problemas, minha situação
E do dia pra noite fiquei rico
Tô na grife, tô bonito
Tô andando igual patrão
Agora eu fiquei doce igual caramelo
Tô tirando onda de camaro amarelo
Agora você diz: "Vem cá que eu te quero!"
Quando eu passo no camaro amarelo [2x]
Agora você vem, né? E agora você quer, né?
Só que agora vou escolher, ta sobrando mulher
Agora você vem, né? E agora você quer, né?
Só que agora vou escolher, ta sobrando mulher
Agora eu fiquei doce igual caramelo
Tô tirando onda de camaro amarelo
Agora você diz: "Vem cá que eu te quero!"
Quando eu passo no camaro amarelo
Agora você diz: "Vem cá que eu te quero!"
Quando eu passo no camaro amarelo
Agora eu fiquei doce, doce, doce, doce
Agora eu fiquei do-do-do-do-doce, doce
Agora eu fiquei do-do-do-do-doce, doce [2x]
Agora eu fiquei doce igual caramelo
Tô tirando onda de camaro amarelo
Agora você diz: "Vem cá que eu te quero!"
Quando eu passo no camaro amarelo
Quando eu passava por você na minha CG
Você nem me olhava
Fazia de tudo pra me ver, pra me perceber
Mas nem me olhava
Aí veio a herança do meu ‘véio',
Resolveu os meus problemas, minha situação
E do dia pra noite fiquei rico
Tô na grife, tô bonito
Tô andando igual patrão
Agora eu fiquei doce igual caramelo
Tô tirando onda de camaro amarelo
Agora você diz: "Vem cá que eu te quero!"
Quando eu passo no camaro amarelo
Agora você vem, né? E agora você quer, né?
Só que agora vou escolher, ta sobrando mulher
Agora você vem, né? E agora você quer, né?
Só que agora vou escolher, ta sobrando mulher
Quando eu passava por você na minha CG
Você nem me olhava
Fazia de tudo pra me ver, pra me perceber
Mas nem me olhava
Aí veio a herança do meu ‘véio',
Resolveu os meus problemas, minha situação
E do dia pra noite fiquei rico
Tô na grife, tô bonito
Tô andando igual patrão
Agora eu fiquei doce igual caramelo
Tô tirando onda de camaro amarelo
Agora você diz: "Vem cá que eu te quero!"
Quando eu passo no camaro amarelo [2x]
Agora você vem, né? E agora você quer, né?
Só que agora vou escolher, ta sobrando mulher
Agora você vem, né? E agora você quer, né?
Só que agora vou escolher, ta sobrando mulher
Agora eu fiquei doce igual caramelo
Tô tirando onda de camaro amarelo
Agora você diz: "Vem cá que eu te quero!"
Quando eu passo no camaro amarelo
Agora você diz: "Vem cá que eu te quero!"
Quando eu passo no camaro amarelo
Agora eu fiquei doce, doce, doce, doce
Agora eu fiquei do-do-do-do-doce, doce
A
escolha desta música deu-se por seu caráter hegemônico e dominante de sua
reprodução nos meios de comunicações (rádios, televisores, shows e etc.). De
autoria da dupla Munhoz & Mariano, oriundos da capital do Mato Grosso do
Sul, Campos Grande, a música inicialmente foi lançada na gravação do segundo
DVD da dupla “Ao Vivo em Campo Grande
Vol. II” em maio de 2012 e posteriormente lançada em formato de download
digital em 25 de junho de 2012. Em menos de seis meses, a música, de acordo com
Crowley Broadcast Analysis[8],
atingiu a primeira posição da tabela brasileira das músicas mais tocadas e
ouvidas nas grandes centrais radiofônicas do Brasil. Portanto, impera-se uma
análise de quais valores são reproduzidos e perpetuados através do discurso da
letra desta música.
De
modo geral, a música conta a história, em primeira pessoa, de um jovem rapaz
que almeja chamar a atenção de uma moça. No entanto, por não portar elementos
(dinheiro, carro, status, etc.) que possibilitam o êxito de convencê-la de ser
um rapaz que possa trazer o que ela almeja e valoriza, acaba não conseguindo
chamar sua atenção. Mas um acontecimento muda toda a história: seu pai morre e
o jovem rapaz recebe uma grande herança, transfigurando sua vida; vestindo
roupas de grife, cuidando de sua aparência, “andando igual um patrão” e, sobretudo,
com um novo carro: um Camaro Amarelo. É aqui que ocorre uma guinada na
história: a moça, que antes o ignorava, por ter apenas uma CG (modelo de uma
moto popular), agora com a herança herdada, torna-se interessada pelo rapaz,
agora com status social e ostentando artigos de luxo. Mas o rapaz despreza a
moça, já que sua nova condição o faz ter possibilidades de chamar a atenção de
várias mulheres. E assim a história torna a repetir.
É
evidente uma grande quantidade de elementos axiológicos presentes na letra
desta música. O primeiro deles é a
valoração do dinheiro: o dinheiro como valor fundamental (VIANA, 2012). Com a
intensificação da mercantilização das relações sociais após a instauração do
regime de acumulação integral, a cultura e o universo psíquico dos indivíduos
acabam tornando-se cada vez mais mercantilizados, fazendo com o que a essência
do indivíduo, o Ser, seja obliterado
e substituído pela aparência do TER,
como bem salientou Erich Fromm (1987). O
rapaz só poderá conseguir atenção caso tenha dinheiro, o que possibilita
comprar roupas de grife, melhorar sua aparência e, acima de tudo, obter um
Camaro amarelo, mercadoria de grande apresso e fundamental dentro da música. O
status social do dinheiro, portanto, possibilita o indivíduo ter importância
dentro da sociedade capitalista. Outros
elementos que estão subordinados a valoração do dinheiro, tais como o
tratamento de outro indivíduo como mercadoria, a valoração daquilo que o
indivíduo tem e não daquilo que ele é, reforçam o caráter axiológico dos
valores inseridos na letra desta música.
O
exemplo de “Camaro Amarelo” de Munhoz & Mariano não constitui um caso
isolado dentro do universo da Música Sertaneja Universitária; a grande maioria
das músicas deste “estilo” refere-se a valores axiológicos do consumismo, da
alienação enquanto relação social, do amor romântico burguês, da valoração da
ostentação e etc., tais como “Piradinha” de Gabriel Valim, “As mina pira” de
Gusttavo Lima, “Ai se eu te pego” de Michel Telo e entre outras. Claro que há exceções, onde o discurso da
ostentação e do dinheiro como valor fundamental não são reinantes, como nas
músicas de Victor & Léo, Paula Fernandes etc., no entanto, estes cantam
representações cotidianas que em grande medida são ilusórias, sobretudo sobre o
amor romântico burguês.
CONCLUSÃO
A luta cultural perpassa uma luta
mais ampla, que é a luta de classes. Nesse sentido, a análise e crítica de
produtos culturais que expressam valores axiológicos tornam-se necessários para
demonstrar que as relações sociais que constituem estes produtos culturais são
determinadas, não naturais e que reforçam a exploração e dominação. Nesse sentido, a Música Sertaneja
Universitária cumpre um papel de obliterar o avanço na consciência para a emancipação
humana e perpetuar valores axiológicos da classe dominante.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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audição. In: Os pensadores, São Paulo: Editora Abril, 1975, vol. XLVIII.
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Sertanejo Universitário: o gosto como uma atividade reflexiva. In: Anais do
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O capitalismo na era da acumulação integral. São Paulo: Ideias & Letras,
2009, p. 41-93.
MUSICOGRAFIA:
MUNHOZ
& MARIANO. Camaro Amarelo.
[1] Graduando em Ciências Sociais
com habilitação em políticas públicas pela Universidade Federal de Goiás – UFG.
[2] Graduando em Ciências Sociais
com habilitação em políticas públicas e monitor da disciplina de Antropologia
na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás – UFG.
[3]
Podemos entender o mais-valor relativo como a ampliação da produtvidade
física do trabalho por meio da mecanização.
[5] O conceito de Ideologia que está
sendo utilizado aqui é o mesmo conceito utilizado por Marx, ou seja, Ideologia
como falsa consciência sistematizada.
[6] Definição dada por Antonio
Candido, que exprime “um tipo social e cultural, indicando o que é, no Brasil,
o universo das culturas tradicionais do homem do campo; as que resultam do
ajustamento do colonizador português ao Novo Mundo, seja por transferência e
modificação dos traços da cultura original, seja em virtude do contacto com o
aborígene” (Candido, 1971)
[8]
Crowley Brodcast Analysis é uma empresa que faz a monitoração em rádios, para
informações musicais e de veiculação publicitária. Outro elemento que demonstra sua importância
para o capital fonográfico é que ela
fornece, desde 2009, as paradas para a revista Billboard Brasil que se baseia
na grade-básica de rádios com mais de 350 emissoras.
.......................
http://www.saps.com.br/sites/estacio/downloads/revista/revista08_humanas-14.pdf
Nildo Viana e a Formação do Gosto Musical
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
Faculdade de Educação - Departamento de Estudos Básicos
Disciplina: EDU01016 - Projetos de Aprendizagem em Ambientes Digitais - Turma B
Professor: Crediné Silva de Menezes
Alunos: Filipi Santos Correa e Rafaella da Silva Barros
UMA INDAGAÇÃO SOBRE GOSTO
MUSICAL
Sendo
fomentados a pensar em uma questão a ser refletida e, a partir dela,
desenvolver um projeto de aprendizagem conjunta em ambientes digitais, tivemos
nossos interesses voltados para o mesmo assunto, uma indagação a respeito do
gosto musical. Nosso ponto de partida para a reflexão desta temática
contituiu-se em nos perguntar se o gosto musical seria um fator de distinção
social. Nossa certeza provisória a respeito da questão era a de que o gosto
musical consistia em ser um fator, mas não o único, de aproximação e de
relação interpessoais, ou seja, algo de influência sobre as relações sociais.
Nesse sentido, nossa dúvida temporária com relação à questão era se esse mesmo
gosto musical, que aproxima pessoas por suas preferências, seria prédeterminado
por uma espécie de "determinismo social", isto é, se o gosto musical
consistiria em ser um fator de distinção de grupos sociais. A partir daí, nossa
questão passou a ser desenvolvida como projeto de aprendizagem, e nos
empenhamos em sair da reflexão pura, partindo para a busca de respostas em
diferentes meios.
Encontramos
na leitura de Nildo Viana, doutor em Sociologia pela UnB, uma das respostas à
nossa dúvida temporária. Diz ele em seu artigo O Capital Fonográfico e a
Formação do Gosto Musical:
"[...] o gosto dos indivíduos é formado
socialmente, mas como os indivíduos possuem uma singularidade psíquica, uma
história de vida única, então as chamadas idiossincrasias são elementos
diferenciadores na constituição do gosto. No caso do gosto musical, deixando de
lado as diferenças individuais, que existem, mas que não são coisas
metafísicas, são elas mesmas produtos sociais, é possível entender a sua
formação num nível mais geral, no caso dos grupos sociais. Pensar no gosto
musical da população é algo problemático, tendo em vista que não há
homogeneidade neste gosto. Neste sentido, é interessante perceber que o gosto
musical é composto por diversas camadas que expressam um grupo social ou
diversos grupos/classes sociais".
Nesta leitura, Nildo Viana faz uma
distinção entre o gosto musical e o gosto em si. Neste, ele reconhece as
diferenças individuais como elementos diferenciadores na sua constituição.
Naquele, considera já as diferenças individuais como produtos sociais, o que o
leva a entender o gosto musical como expressão de um grupo social. Sob este viés, nossa dúvida temporária em relação ao
gosto musical prédeterminado se encaminha para uma afirmação, que se estende
para a questão de nosso projeto. Ou seja, com esta leitura seria possível
afirmar que o gosto musical é um fator de distinção social.
Como
trata-se de um projeto de aprendizagem em ambientes digitais, criamos uma
enquete na rede social facebook para
termos acesso às respostas de diferentes pessoas sobre essa mesma questão.
Analisando as respostas, encontramos uma diferente perspectiva daquela
apresentada por Nildo Viana. Quarenta por cento dos participantes da enquete
responderam que não consideram o gosto musical um fator de distinção
social, ao que trinta por cento responderam ter dúvidas. Assim sendo, nossa
dúvida temporária resolve-se com o entendimento de um gosto musical não-prédeterminado.
Para utilizar os termos de Nildo Viana, entende-se aqui que as diferenças
individuais sobressaem o determinismo social também na constituição do gosto
musical.
Em
ambas as perspectivas foi possível confirmar nossa certeza provisória. Na
leitura de Nildo Viana ela se confirma ao considerar o gosto musical um fator
de influência nas relações sociais. O que acontece aqui é um enfoque nessa
característica, que culmina no pensamento do gosto musical como expressão das
diferentes classes sociais, deixando de lado as idiossincrasias. Já com base
nas respostas da enquete, nossa certeza se confirma ao considerar o gosto
musical como apenas um dos fatores dessa influência. Aqui se leva em conta as
diferenças individuais na formação do gosto musical.
Tendo
em vista as duas perspectivas, o gosto musical pode ser entendido não como um
fator de distinção social, mas talvez como um fator da distinção
social. Isto é, se partirmos da leitura feita por Nildo Viana entenderemos o
gosto musical como expressão de grupos sociais; preferências musicais distintas
são encontradas dentro desses grupos, mas não servem para determiná-los
ou para limitar que gosto musical seus indivíduos podem ter. Nesse sentido,
mesmo que preferências musicais distintas sejam encontradas dentro dos grupos,
as diferenças individuais prevalecem e são relevantes na constituição do gosto
musical, o que vai relaciona-se com as respostas dos internautas.
Desse
modo, é possível pensar nos contextos reais em que diferentes gostos musicais
são encontrados dentro de um mesmo grupo social, ou seja, contextos em que há a
aproximação com o diferente. Tal aproximação acontece de forma positiva e
contribui para o enriquecimento cultural dos indivíduos.
terça-feira, 22 de setembro de 2015
O Capital Fonográfico e a Formação do Gosto Musical
Nildo Viana*
A formação do gosto musical é
algo pouco discutido teoricamente e nas ciências humanas. O processo de
formação do gosto é social e não individual, tese que só seria defensável no
mundo das ideologias. Obviamente que tais ideologias existiram e ainda
continuam existindo. Aqui vamos trabalhar com a formação social do gosto
musical e do papel do capital fonográfico na sua constituição[1],
o que nos leva a discutir inúmeras outras questões, como valores, gostos
distintos e grupos sociais distintos, entre outros.
O gosto, em geral, pode ser
pensado sob duas formas: o espontâneo e o refletido[2].
O gosto espontâneo é aquele no qual os indivíduos desenvolvem sem maiores
reflexões, por familiaridade, acessibilidade, compartilhamento social. O gosto
refletido é aquele no qual os indivíduos se informam, relacionam com outros
aspectos da vida social, usa os valores fundamentais como critério para suas
escolhas, etc. Obviamente que no gosto espontâneo, o preconceito, as
idiossincrasias e outras determinações também atuam, mas sem um processo reflexivo.
No caso do gosto refletido, essas determinações também atuam, mas geralmente
sob a forma racionalizada. No caso do gosto musical, esse processo se manifesta
da mesma forma.
Nesse sentido, o gosto dos
indivíduos é formado socialmente, mas como os indivíduos possuem uma
singularidade psíquica (VIANA, 2011a; VIANA, 2013), uma história de vida única,
então as chamadas idiossincrasias são elementos diferenciadores na constituição
do gosto. No caso do gosto musical, deixando de lado as diferenças individuais,
que existem, mas que não são coisas metafísicas, são elas mesmas produtos
sociais, é possível entender a sua formação num nível mais geral, no caso dos
grupos sociais. Pensar no gosto musical da população é algo problemático, tendo
em vista que não há homogeneidade neste gosto. Neste sentido, é interessante
perceber que o gosto musical é composto por diversas camadas que expressam um
grupo social ou diversos grupos/classes sociais.
Assim, podemos realizar algumas
divisões para analisar o gosto musical, sendo a principal divisão entre grande
público, composto pelas classes exploradas e dominadas em geral (proletariado,
lumpemproletariado, campesinato, pequenos proprietários, subalternos, etc.) e
setores menos privilegiados das classes privilegiadas[3],
bem como setores destas interessados ou oriundos das classes exploradas[4]
e público intelectualizado, composto por indivíduos das classes privilegiadas e
por indivíduos das classes exploradas que conseguem uma determinada
escolarização ou formação intelectual. O que predomina, no primeiro caso, é o
gosto musical espontâneo e, no segundo, o refletido.
No entanto, é possível perceber
subdivisões nos dois casos. No caso do grande público, a subdivisão ocorre mais
em casos regionais (no caso brasileiro, existem variações ligadas a estado,
cidade, bairros de regiões metropolitanas, etc.), ação do capital fonográfico
em determinados setores da sociedade (classes, grupos, etc.), etc. Assim, no
interior de São Paulo e de Goiás, a música sertaneja[5]
sempre teve os seus aficionados, enquanto que no Pernambuco há aqueles que
preferem o frevo e no Rio de Janeiro o samba tem um público permanente.
No caso do público
intelectualizado, há o gosto musical dos especialistas (músicos, compositores,
etc.), ou seja, da subesfera musical[6],
bem como daqueles que compartilham tal gosto por sua influência e legitimidade
socialmente conquistada, o que geralmente é dominante na sociedade neste setor.
O critério fundamental nessa subesfera é a técnica e a forma. A música clássica
é o exemplo maior nesse caso, mas que se reproduz, com diferenças, no interior
da música popular também. Acontece que nesse público se forma outros gostos
musicais, muitas vezes compartilhando suas preferências, outras vezes recusando
e elaborando outros critérios para definição do que é considerado bom. No caso,
os valores dominantes da subesfera musical apontam para a técnica e a forma, a
tradição musical, etc. enquanto que alguns setores intelectualizados vão,
partindo de outros valores, erigir outros critérios de qualidade musical, tais
como a crítica social, o vínculo com as raízes histórico-culturais, o
nacionalismo, etc. Algumas “facções”[7]
são constituídas também. Esse é o caso de grupos de indivíduos que elegem
determinadas preferências a partir de grupos unificados por um estilo de vida
(punks, emos, etc.), por relações de amizade, por compartilhamento de gostos,
etc. Além de grupos mais restritos, de gosto unificado e delimitado a um
gênero, banda, cantor, etc., há outros mais amplos, que possuem gosto unificado,
mas que vai além de um gênero ou outro elemento, embora sejam mais frágeis e
cujo elemento unificador é mais a amizade que gera compartilhamento e
reprodução de um mesmo gosto musical (seja um conjunto de músicas, gêneros,
cantores, ou critérios de julgamento e formação de gosto).
Em síntese, o gosto musical é
distinto no interior da população e podemos pensar em dois grandes blocos, o do
grande público, que constitui a maioria da população, e o público
intelectualizado, composto principalmente pelos indivíduos das classes
privilegiadas. Existe uma subdivisão no interior destes grupos e, inclusive,
certos setores que são “intermediários”, tal como parte da juventude
pertencente às classes desprivilegiadas, que possuem um gosto que muitas vezes
diverge do gosto dominante nestas, devido ao vínculo com outros jovens (de
outras classes, através dos meios oligopolistas de comunicação, etc.). Nesse
caso, alguns mesclam o gosto dominante do grande público com o do público
intelectualizado, outros aderem a este e abandona o primeiro. Despois dessa
breve análise da distribuição social do gosto musical, podemos discutir o papel
do capital fonográfico na sua formação.
O Capital Fonográfico e a Formação do Gosto Dominante
O capital fonográfico é
constituído pelas gravadoras de música, grandes empresas que com seu
desenvolvimento se tornaram oligopolistas. O capital fonográfico oligopolista
mundial conta com grandes gravadoras como a Universal, EMI, Sony, Warner, Indie
Recors, entre diversas outras, que são as mais importantes também no mercado
brasileiro, contando com algumas empresas oligopolistas brasileiras, como a
Eldorado e Som Livre. O capital fonográfico oligopolista tem toda uma estrutura
de produção, distribuição e divulgação articulada com outros setores do capital
comunicacional (“indústria cultural”), tais como redes de televisão, emissoras
de rádio, imprensa, etc. e com o capital comercial, tal como grandes
distribuidoras, lojas, etc. Nesse contexto, o grande capital fonográfico não
somente tem uma capacidade de produção muito mais elevada que o pequeno
capital, como também tem uma estrutura de divulgação e distribuição muito
superior e acaba sendo um das principais determinações da formação do gosto
dominante do grande público e, em menor grau, do público intelectualizado.
Esse processo se realiza através
do processo de gravação, já que o capital fonográfico seleciona o que vai
gravar e, portanto, escolhe os músicos, gêneros, cantores, bem como influencia
no processo de gravação. Além disso, uma vez que o cantor ou cantora, banda,
etc., pretende ter sucesso, há a busca em se adequar à dinâmica do capital
fonográfico (o que significa se adequar às suas exigências) e do capital
comunicacional (inclusive alguns sem perceber, mas querendo o sucesso, produz
aquilo que está sendo divulgado e aceito pelo grande público – ou, em alguns
casos, pelo público intelectualizado). Ao selecionar o que é produzido em
matéria de música, oferece um universo de escolhas limitadas e ao privilegiar e
gravar uma maior quantidade de determinado tipo de música, torna o processo de
escolha por parte do público ainda mais limitado.
A sua influência também se
manifesta no seu poder de distribuição e divulgação, através do capital
comercial e outros setores do capital comunicacional. A televisão e o rádio
assumem um papel fundamental nesse processo (sendo reforçado por outros). A
quantidade de músicas gravadas é muito maior do que a de músicas conhecidas
pelo público. Isso se deve ao fato de que as antigos Long Plays (LPs) ou os
atuais Compact Discs (CDs) possuem uma quantidade determinada de músicas,
geralmente dez, mas são divulgados uma ou duas músicas, e apenas no casos dos cantores
já consagrados um número maior. A escolha de quais faixas serão divulgadas e
terão primazia no disco também é determinada pelo capital fonográfico. O
capital fonográfico usa seus critérios para realizar tais escolhas e estes
interferem tanto no conteúdo da música (mensagem) quanto na forma (melodia,
arranjo, interpretação, etc.). Por conseguinte, não se espera de uma dupla
sertaneja nada além da interpretação tradicional (a não ser que se crie um
“derivado” com diferenciação, tal como o chamado “sertanejo universitário”), e
o que se quer são refrãos repetitivos e coisas que supostamente seriam do gosto
popular, que, contudo, é o gosto dominante imposto pelo capital fonográfico que
se reproduz na população, tornando-se “popular”. Nesse sentido, a produção de
músicas triviais é a preferência do capital fonográfico, por ser uma fórmula
mais fácil de sucesso e isso reforça tal preferência como gosto dominante no
grande público. As emissoras de rádio são influenciadas pelo capital
fonográfico e, além disso, muitas delas pertencem a eles ou fazem parte de
algum aglomerado do capital comunicacional, contando com gravadora, emissoras
de rádio e TV[8].
A presença das músicas na
televisão é outra fonte de popularidade. A Rede Globo, devido sua audiência,
que em outras épocas foi maior, exercia uma forte influência na produção dos
sucessos, com as trilhas sonoras de novelas, programas musicais que existiram
ou ainda existem (Globo de Ouro, Cassino do Chacrinha, Domingão do Faustão, Fantástico,
etc.). As outras redes de TV, algumas inclusive possuem público específico e
menos exigente, realizam processo semelhante e colocam em evidência cantores e
músicas de pior qualidade ainda, tal como nos programas de Silvio Santos e
semelhantes, bem como as redes “educativas”, que possuem um público
telespectador muito menor (TV Cultura, por exemplo), que trabalham geralmente
com músicas complexas, atendendo ao gosto musical do público intelectualizado.
A força do capital fonográfico
se manifesta quando ele resolve emplacar um produto, pois nem todos recebem a
mesma atenção, inclusive em sua ação sobre as emissoras de rádio. O caso dos
Beatles nos anos 1960, citado por Jambeiro (1975, p. 8) apenas exemplifica esse
processo:
A criação de
um ídolo para o público, no que se refere às gravadoras é a mais agressiva
possível e bastante comercial. Quando do lançamento dos Beatles no Brasil, por
exemplo, a gravadora que os lançou chegou ao ponto de conseguir de todas as
rádios que tocassem, num determinado dia, às 9 horas da manhã, todas juntas,
somente o disco de lançamento dos Beatles. Ao mesmo tempo, todas as lojas de
disco, nas mesmas cidades, faziam a mesma coisa, o que inundou os ouvidos de
grande parte da população brasileira com o som do ruidoso conjunto.
Capital Fonográfico e Grande Público
Essa ação tem uma eficácia
enorme principalmente junto ao grande público. A razão disto é que, como
colocamos anteriormente, o seu gosto é mais espontâneo e, por conseguinte, mais
influenciável pela repetição, familiaridade, clima social, simplicidade, etc. e,
portanto, mais próximo da música trivial. A influência do capital fonográfico
sobre outros setores do capital comunicacional (rádios, TVs, revistas, jornais,
etc.) criam um processo marcado pela repetição das mesmas músicas, criando um
clima social de que tais músicas são as da moda e que a maioria gosta, o que é
reforçado pela familiaridade e simplicidade das mesmas, uma exigência das
gravadoras para sua seleção, pois o grande público adere mais facilmente a tais
formas musicais. Os modismos e a fabricação de ídolos são algumas das
estratégias mais utilizadas pelo capital fonográfico.
A criação de modismos emerge com
o Rock and Roll, que era uma moda voltada principalmente para o público jovem
em geral[9]. O
que existia antes eram produções musicais para públicos específicos e canções
populares para o grande público, mas sem uma renovação rápida, o que passa a ser
presente com as mudanças do capitalismo no pós-segunda guerra mundial, com a
formação do regime de acumulação conjugado, que em suas interpretações
ideológicas ficou conhecido como “sociedade de consumo”. Esse processo foi
avançando com o tempo. Os modismos criam um vínculo geracional, pois ele atinge
principalmente a juventude. Esse foi o caso da música disco no final dos anos
1970 e início dos anos 1980, no qual tal gênero musical era importado dos
Estados Unidos e tinha seus copiadores nacionais, sendo inclusive tema de
novela da Rede Globo, Dancin’ Days. A
referida novela teve forte impacto, pois a disco
music aparecia constantemente não só na trilha sonora, mas na própria
temática da novela, com diversas cenas em discotecas (época das mesmas e das
matinês para crianças), no seu título e música de abertura, cantada pelo grupo
As Frenéticas. A trilha sonora internacional trazia várias músicas do gênero e
a nacional tinha até a roqueira Rita Lee entrando na moda, mas de forma
irônica, o título da música era “Agora é moda”.
A fabricação de ídolos é outra
estratégia do capital fonográfico. No caso brasileiro, isso ocorre desde Carmem
Miranda e as “grandes vozes” (Silvio Caldas, Vicente Celestino, Francisco
Alves, etc.), mas o processo de criação de ídolos se torna muito mais eficaz
após 1945, especialmente nos anos 1950 e 1960. Elvis Presley foi o primeiro
grande exemplo e The Beatles foi o segundo. Elvis Presley era um produto
direcionado para um novo e amplo mercado consumidor, a juventude[10],
e por isso a dança frenética, a irreverência e rebeldia foram elementos
utilizados, ao lado do uso expressivo de outros setores do capital
comunicacional, especialmente o cinema, já que este cantor estrelou diversos
filmes, aliado com outras estratégias, como grandes shows, televisão, etc. Já o
caso de The Beatles mantinha muitas
semelhanças, bem como diferenças. Apesar das diferenças, tais como o capital
comunicacional estar muito mais desenvolvido e o quarteto ser inglês, o sucesso
também foi estrondoso e o capital fonográfico teve um papel fundamental.
No caso brasileiro, o maior
exemplo é a cópia brasileira do rock norte-americano com a chamada “Jovem
Guarda” e, principalmente, Roberto Carlos. Obviamente que num contexto marcado
pela oposição entre bossa nova, por um lado, e a canção de protesto, por outro,
a emergência da Jovem Guarda, e também do tropicalismo, aumenta a variedade e
marca um processo de substituição, pois os últimos acabam superando os
primeiros. A música trivial, mais adequada ao gosto espontâneo, ganha espaço
nesse contexto e Roberto Carlos é escolhido para ser o grande ídolo fabricado
brasileiro, uma experiência do tipo Elvis Presley, mas sem a voz, estilo, entre
outras características, do mesmo. A escolha foi péssima, pois a voz de Roberto
Carlos é horrível e sua irreverência se limitou a algumas músicas bem
simplistas (tipo “Calhambeque”; “Splish, Splash” e “Pega Ladrão”), sem falar de
que o rock (dele e da Jovem Guarda) era risível.
A fabricação de Roberto Carlos
como ídolo seguiu a fórmula de Elvis Presley, que ficou conhecido como “Rei do
Rock”. Em programa de TV, na Rede Tupi, no início de sua carreira, Roberto Carlos
era apresentado como “Elvis Brasileiro”. A ideia de transformá-lo em “rei” tem
essa origem e acabou sendo reproduzido por muitos, em que pese apesar de suas
vendagens expressivas, sempre teve um público bastante oposto a ele, e por
razões bens distintas da oposição a Elvis Presley, pois este era acusado de
cantar música negra, entre outras questões sociais, enquanto que o problema de
Roberto Carlos era geralmente a má qualidade de suas músicas e/ou seu
conservadorismo político, expresso em suas letras de músicas (inexpressivas e
que não saiam do romantismo brega) e outras práticas concretas, tal como no seu
show no Chile onde agradece ao ditador Augusto Pinochet e sua relação amistosa
– e segundo alguns documentos, “colaboração” – com o regime militar. No
entanto, o programa de TV da “Jovem Guarda” (TV Record, 1965-1968), apresentado
por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa, era uma fórmula que deu
resultados, inclusive maiores do que dos seus concorrentes[11].
Desta forma, o gosto dominante
do grande público é formado principalmente pelo capital fonográfico aliado aos
demais setores do capital comunicacional. Obviamente que existem outras
determinações que ultrapassam a força do capital fonográfico. Muitos indivíduos
do grande público têm acesso ao que é produzido para o público especializado e
alguns mudam ou mesclam suas preferências anteriores com as novas oriundas
desse contato. O sentimento nostálgico, de músicas do passado que relembram
acontecimentos, sentimentos, etc., também é uma determinação mais individual e
ligada à história do indivíduo[12],
bem como seus contatos sociais e informações sobre música e sociedade. As
músicas também podem despertar sentimentos e ao fazê-lo também promove o gosto
por ela. Os jovens e os que pretendem trabalhar no ramo musical, oriundo do que
foi chamado “grande público”, também se aproximam do gosto do público
intelectualizado, seja parcialmente ou de forma mais ampla. A época e as
ressonâncias das lutas sociais, os valores de cada grupo ou indivíduo dentro do
grande público, a formação intelectual, entre diversos outras determinações,
além das divisões já aludidas, tal como as regionais, dificulta o reino
absoluto do capital fonográfico. Isto sem esquecer os equívocos que os
responsáveis pelo capital fonográfico podem cometer, tal como a tentativa
frustrada de retomada da bossa nova após o fim do boom do rock brasileiro em
meados dos anos 1990, forçando inclusive roqueiros a produzir músicas nesse
gênero (Rita Lee, Lobão, Lulu Santos, etc.), o que foi um fracasso.
Capital Fonográfico e Público Intelectualizado
O capital fonográfico e seus
aliados do capital comunicacional também atua sobre o público intelectualizado.
Nesse caso, a influência é menor e os agentes da subesfera musical acabam sendo
fortes influências nas ações do capital fonográfico. Contudo, os interesses dos
artistas venais ligados diretamente ao capital comunicacional e dos outros,
ligados às estruturas de produção e reprodução do capital fonográfico, provoca
em vários setores (compostos por aqueles que são hegemônicos e estabelecidos na
subesfera musical) a política de “boa vizinhança” com os mais comerciais. É por
isso que poucos entraram em confronto com Roberto Carlos, por exemplo, tal como
o fez Sérgio Sampaio em sua música “Meu Pobre Blues” ou, recentemente, Caetano
Veloso, no caso mais específico a respeito da questão das biografias
não-autorizadas. No caso da música sertaneja, não deixa de ser engraçado como
Lulu Santos fez a crítica e depois voltou atrás, embora Guilherme Arantes,
agora em 2013, criticou e até agora não se arrependeu.
O público intelectualizado é
mais dividido do que o grande público. Alguns preferem música clássica, outros
MPB, Jazz, etc. Entre os mais jovens, o Rock ainda ocupa grande espaço, bem
como surgem facções com variados gostos musicais, formado desde por fã clubes
até grupos caracterizados por estilo de vida, sem falar nos saudosistas que
formam grupos de gosto referentes às músicas mais antigas (por cantor, época,
gênero, etc.). Esse processo de diferenciação tem a ver com a classe social,
frações de classes, nível de formação intelectual, idade, geração, atividade
profissional, até chegar às diferenças mais individuais, as mesmas que atuam
também sobre o grande público. Mas como o gosto musical do público
intelectualizado é mais refletido, então as músicas complexas são preferidas em
relação às músicas triviais. Obviamente que as músicas complexas não possuem
homogeneidade e seu nível de complexidade varia, bem como algumas músicas
triviais[13]
acabam conquistando também parcela do público intelectualizado, mas sendo mais
comum as que se destacam ou possuem algum diferencial.
O público intelectualizado
possui como determinação do seu gosto musical a racionalidade, o que gera
critérios específicos para julgar, avaliar e gostar de músicas, de acordo com
determinados valores. O hegemônico nesse público é o que a subesfera musical
define como qualidade e o aspecto técnico-formal torna-se o fundamental. Esse
formalismo e tecnicismo gera uma concepção elitista, o que é comum num setor de
tal público. Até intelectuais renomados, como Theodor Adorno (2008), demonstram
uma concepção elitista de música. Outros setores elegem como critério a
criticidade das músicas, embora muitos de forma ambígua, usando-o apenas para
justificar seu gosto geralmente irrefletido. No entanto, esse é um dos
critérios do público intelectualizado e a ênfase, ao contrário da concepção
elitista, recai é na mensagem, no conteúdo, e não na forma ou técnica. Para
algumas concepções mais extremas, até mesmo a desqualificação da forma e
técnica é realizada, como em algumas manifestações musicais e de gosto. Uma
outra vertente já apresenta um conjunto de critérios por enfatizar a totalidade
da música, embora colocando como essencial o conteúdo, ou seja, sua mensagem,
de caráter crítico, no sentido de uma utopia concreta.
Por detrás de cada uma dessas
preferências, se manifestam valores. No primeiro caso, revela-se um gosto
axiológico, pautado nos valores dominantes, enquanto que nos demais revela-se
um gosto axionômico, ou seja, fundado em valores autênticos[14].
Grupos mais restritos podem escolher gênero, cantor, banda, etc., e o critério,
nesse caso, tem a ver com uma tradição criada pelo grupo (ou pelo capital
fonográfico, região, etc.) ou fundada na história da música, etc., e os valores
que motivam isso pode ser o nacionalismo, regionalismo, rebeldia, entre outros.
O capital fonográfico produz
estratégias específicas para atingir tal público, sendo que o principal é o
discurso da qualidade, aliado ao formalismo e tecnicismo, e muitas aliando isso
com outros elementos, para criar uma ponte com o grande público. No entanto, o
capital fonográfico elege públicos específicos e existem gravadoras
especializadas em determinadas produções musicais, não só para o grande público,
mas também para o público intelectualizado. Existem emissoras de rádio
especializadas em Rock, Country, Jazz, MPB, etc., assim como para o grande
público existem emissoras especializadas em sertanejo, “jovem” ou “pop”, etc.
Da mesma forma, existem aquelas que querem atingir o maior número possível do
público intelectualizado, sendo, portanto, ecléticas ou priorizando a suposta
qualidade, expresso no formalismo/tecnicismo.
Contudo, esse público
intelectualizado que escolhe seu gosto musical de forma racionalizada, nem
sempre o faz através de amplas reflexões. Muitos conhecem muito pouco de
história da música, gêneros, técnica, sentimentos ou emoções despertados, etc.,
e geralmente seguem as opiniões surgidas de supostas “autoridades” no assunto
(seja os agentes da subesfera musical, seja indivíduos que fazem discurso sobre
qualidade ou técnica nos meios oligopolistas de comunicação), sendo que ambos
são acessíveis principalmente através do capital comunicacional (jornais,
revistas, rádio, TV e, em menor grau, livros), embora uma parte seja nas
instituições de ensino (universidades, por exemplo) ou mesmo amizades
consideradas “cults” ou entendidos no assunto. A razão para tal incorporação de
gosto musical remete aos valores dominantes e a necessidade de “distinção”,
para usar termo de Bourdieu (2007). Ou seja, na competição social, algo
estrutural da sociedade capitalista (VIANA, 2008), algumas pessoas querem se
destacar e vencer e uma das formas de conseguir isso é mostrando superioridade
intelectual, o que pode ser demonstrado por possuir um gosto pautado numa
suposta “qualidade”, em saber técnico, em opinião de pessoas cultas ou
especializadas[15].
Contudo, a aparência de inteligência revela, na essência, a ignorância.
Considerações Finais
O gosto musical individual é
constituído socialmente, seja ele qual for. Mesmo o setor mais refletido do
gosto musical do público intelectualizado tem sua formação social. O gosto
musical manifesta valores incorporados, tal com a técnica, a crítica, a
tradição, a nação, a região, a voz, a interpretação, a letra, a melodia, o
gênero, emoções ou sentimentos despertados, etc. e isso vale para o mais
complexo e “refinado”. Por isso, nada mais ilusório do que aqueles indivíduos
que não fazem autorreflexão e autocrítica sobre seu gosto (musical e qualquer
outro), julgando que ele é uma mônada, um mundo isolado, autossuficiente e
autoproduzido e, pior ainda, que é superior e indiscutível. Inclusive essa
última pretensão é mais um produto da competição social e da mentalidade
burguesa (VIANA, 2008).
Da mesma forma, recusar a
influência do capital fonográfico no gosto individual é ilusório, pois o que
varia é o seu grau. Outro problema é o relativismo, ao considerar que todo
gosto musical é equivalente, pois eles manifestam interesses, valores,
representações, sentimentos, etc., que são expressões de distintas perspectivas
de classe e, por conseguinte, não são neutras e nem equivalentes, servem para
objetivos e projetos distintos, desde aquele que é fascista até o que é
expressão da luta pela emancipação humana, aqueles que servem para entorpecer e
os que servem para desenvolver a consciência.
O gosto musical, portanto, deve
ser compreendido e analisado não para promover o seu domínio pela razão
instrumental, o que seria querer generalizar a preferência de parte do público
intelectualizado. O tecnicismo e o formalismo são as bases de um elitismo tão
pobre e torpe quanto qualquer concepção conservadora. A música é uma totalidade
e sua qualidade só pode ser avaliada levando isso em consideração (VIANA,
2007), bem como entendendo que o seu conteúdo é o essencial e elemento
principal de avaliação, embora não único. Uma música que passa uma mensagem
excelente, com teor crítico e elaborado, mas sua forma (interpretação, arranjo,
melodia, etc.) é mal elaborada, é, comparativamente, inferior em qualidade a
uma outra que tanto conteúdo quanto forma são bem estruturadas.
Por fim, é fundamental entender
que o gosto musical é formado socialmente e que o capital fonográfico tem um
papel importante em sua formação. Os indivíduos precisam ter consciência de que
seu gosto musical não é natural, que brotou em sua cabeça a partir do nada, de algo
inato ou de algo metafísico como um “mundo interior” de caráter místico. O
desejo de liberdade não deve promover a confusão entre o ideal e o real. A
ilusão de liberdade é um reforço para a reprodução da falta de liberdade e o
reconhecimento da não-liberdade é um primeiro passo para sua realização.
Referências
ADORNO, Theodor. Escritos Musicales IV. Madrid: Akal, 2008.
BOURDIEU, Pierre. A Distinção. Porto Alegre: Zouk, 2007.
BOURDIEU, Pierre. Gostos de Classe e Estilo de Vida. In: ORTIZ, Renato (org.). Bourdieu. São Paulo: Ática, 1994.
DIAS, Marcia Tosta. Os Donos da
Voz. Indústria Fonográfica Brasileira e Mundialização da Cultura. São
Paulo: Boitempo, 2000.
JAMBEIRO, Othon. Canção de Massa
– As Condições da Produção. São Paulo, Pioneira, 1975.
VIANA, Nildo. A Dinâmica da
Violência Juvenil. São Paulo: Ar Editora, 2014a.
VIANA,
Nildo. A Esfera Artística. Marx,
Weber, Bourdieu e a Sociologia da Arte. 2ª edição, Porto Alegre: Zouk, 2011b.
VIANA, Nildo. Introdução à Sociologia.
2ª edição, Belo Horizonte: Autêntica, 2011a.
VIANA, Nildo. Juventude e
Sociedade. No prelo. 2014b
VIANA, Nildo. O Papel do Indivíduo na História. Cadernos de História.
Belo Horizonte/PUC-MG, 2013.
VIANA, Nildo. Os
Valores na Sociedade Moderna. Brasília, Thesaurus, 2007a.
VIANA, Nildo. Para Além da Crítica dos Meios de Comunicação. In: VIANA,
Nildo (org.). Indústria Cultural e
Cultura Mercantil. Rio de Janeiro: Corifeu, 2009.
VIANA, Nildo. Universo Psíquico e
Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo: Escuta, 2008.
* Professor da Faculdade de Ciências
Sociais da Universidade Federal de Goiás e Doutor em Sociologia/UnB.
[1]
Não vamos discutir aqui de forma aprofundada o conceito de capital fonográfico
ou o conceito de capital comunicacional. Para ficar compreensível o que
queremos dizer entenda-se pelo primeiro termo o que comumente se chama de
“indústria fonográfica” e pelo segundo “indústria cultural”, apesar das
diferenças de concepções e, por conseguinte, de terminologia. Sobre “indústria
fonográfica” existe uma certa bibliografia, com destaque para Dias (2000) e
sobre capital comunicacional é possível consultar Viana (2009).
[2]
Não há espaço para uma discussão sobre as diversas definições e concepções de
gosto. Aqui apenas esclarecemos que em nossa perspectiva gosto significa
disposição afetiva favorável a um ser, objeto, pessoa, obra de arte, etc. Nesse
sentido, o gosto tem elementos sentimentais e racionais, sendo que em alguns
casos o peso maior é dos sentimentos e no segundo da razão. O gosto musical,
portanto, é a disposição afetiva favorável a determinadas músicas, cantores ou
cantoras, bandas, gêneros, etc.
[3]
As classes privilegiadas são a burguesia e suas classes auxiliares,
especialmente a burocracia e a intelectualidade.
[4]
Os setores interessados são aqueles que produzem ou ganha com determinada
produção musical, como é o caso dos cantores de música trivial (“brega” e
músicas simples em geral). No segundo caso, temos, como exemplo, os “novos
ricos” ou pessoas oriundas das classes exploradas que conseguem uma ascensão
social (sob as mais variadas formas, desde o sucesso inesperado em algum
programa televisivo, tal como um Reality
Show, passando pela sorte na loteria ou por processos sociais mais amplos
que permitem ascensão de um contingente maior de pessoas). Em ambos os casos,
os indivíduos mudam de classe social, mas não possuem a cultura da classe a
qual passam a pertencer, mantendo sua cultura anterior, mesmo que mesclando
alguns aspectos.
[5]
Nada mais falso do que a ideia de Goiânia é uma cidade que tradicionalmente
tinha vínculo com música sertaneja. Isso foi um produto do capital
comunicacional a partir dos anos 1980, que, graças a sua ação acabou
influenciando o gosto musical de parte da população, inclusive muitos que
explicitamente não gostavam deste tipo de música.
[6]
A esfera artística, assim como as demais, pode ser dividida em subesferas, e no
seu caso, há a subesfera musical, teatral, literária, quadrinística, etc.
[7]
Ao invés de usar termos como “tribos” ou “guetos”, preferimos “facções”,
retirando-lhe o sentido militar ou pejorativo. As facções são grupos informais
reunidos em torno de uma causa, estilo de vida, valores, gostos, posições
políticas, crenças religiosas, etc. O termo tribo é descontextualizado, pois é
manifestação das sociedades tribais e sua adaptação ao caso da sociedade
moderna é problemática, assim como gueto, esse último para tratar dos grupos
que abordamos aqui.
[8]
O caso mais conhecido e famoso é o das organizações globo (e suas reprodutoras
regionais, embora poucas possuam gravadoras), que além da Rede de TV, emissoras
de rádio, jornais, editora, também possui a gravadora Som Livre, responsável
pelas trilhas sonoras das suas novelas. A maior gravadora brasileira, a
Eldorado, é do Grupo Estadão.
[9]
Claro que isso não se refere ao Rock como um todo e nem em relação aos seus
produtores mais críticos, mas o foco aqui é o capital fonográfico e este que
possibilitou a explosão desse gênero musical e sob esta forma.
[10]
A juventude é um grupo social constituído na sociedade capitalista (VIANA, 2014a)
e tem como uma de suas características atribuídas à rebeldia (VIANA, 2014a;
VIANA, 2014b) e o rock, com sua irreverência, crítica ou ironia, dependendo da
época, banda, etc. acaba sendo a forma ideal de música para tal grupo.
[11]
Na época havia o programa dos representantes da bossa nova, O Fino da Bossa (TV Record, 1965-1967),
apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues, que acabou perdendo espaço para
eles, bem como, na sequência, o programa dos representantes da Tropicália,
Gilberto Gil e Caetano Veloso, Divino
Maravilhoso (TV Tupi, outubro-dezembro de 1968, pois o programa foi
cancelado devido exílio dos apresentadores pelo regime militar), entre outros.
[12]
É um caso individual que afeta aos indivíduos em geral, sob formas e com
intensidades diferentes. O capital fonográfico também se aproveita disso, tal
como se pode perceber no lançamento (e sucesso) de Stars On 45, fazendo medley
ou pout pourri, ou seja, mistura de
músicas selecionadas de um cantor/a, banda, estilo, etc. O Stars On 45 fez medleys dos Beatles,
Bee Gees, Aba, Boney M, Disco Music, músicas dos anos 1970 e dos anos 1980,
entre outros. Mas o capital fonográfico ganha mais hoje com o avanço
tecnológico que permite a aquisição de músicas antigas e permite grandes
vendagens, tal como ocorre com as músicas dos anos 1960. 1970 e,
principalmente, 1980 e os diversos CDs lançados com coletâneas desse período
demonstra isso. Obviamente que isso tem a ver com a perda de qualidade e
sucessão mais rápida dos modismos realizada pelo capital fonográfico e o
desagrado do público de gerações anteriores.
[13]
As músicas triviais são aquelas que são mais simples, seja nas letras,
melodias, arranjos, interpretação, geralmente em mais de um desses elementos
simultâneos. Não se deve confundir músicas triviais com músicas “cafonas”
(termo usado na década de 1970 e generalizado pela novela com o nome “Cafona”),
ou “bregas” (termo utilizado a partir do início dos anos 1980 e popularizado
pela Rede Globo principalmente via sua novela, “Brega Chique”, de 1987), pois
estas são músicas de determinado tipo, consideradas de “mau gosto”, seja devido
a um romantismo simplório, obscenidade, exageros visuais, vocais, etc. As
músicas complexas, como o nome já diz, são as que a complexidade é maior em
seus elementos, seja em um ou vários (letra, melodia, arranjo, interpretação).
Existem algumas músicas que ficam num plano intermediário. Algumas buscam
mesclas intencionalmente, como Eduardo Dusek na MPB em algumas de suas
produções, especialmente seu LP “Brega Chique” (1984). Em outros casos, é o
espírito rebelde ou intenção crítica que gera isso, tal como no Punk Rock, onde
elementos de músicas triviais (e até alguns que seriam considerados de música
brega, tal como alguns trechos de música dos Garotos Podres, para citar apenas
um exemplo) se encontram presentes. Não deixa de ser curioso o desdém de certos
intelectuais pela música “cafona” ou “brega” apelando para a concepção de
indústria cultural de Adorno, sem perceber que até as palavras que usam são
produtos desta e que, portanto, não estão tão em oposição a ela como pensam.
[14]
Sobre axiologia e axionomia, cf. Viana (2007), e a respeito dos critérios
escolhidos para o gosto e o que se considera de qualidade, veja o capítulo
“valores e qualidade”.
[15]
Isso atinge até algumas pessoas das classes desprivilegiadas, mesmo que apenas
formalmente, tal como no caso de um operário que diz gostar de música clássica
apesar de não entendê-la, tal como se pode ver em pesquisa realizada por
Bourdieu (1994).
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Publicado originalmente em:
http://redelp.net/revistas/index.php/rel/article/view/4viana17/142
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